ARKIVÃO

ARKIVÃO - espaço para reunir o que vou escrevendo ao longo do tempo, e que se encontra espalhado por aí; arkitectura, referências a terra de origem, divagações disléxicas; tentativa de organização, mas sem critério e por vezes sem cronologia; organização anárKica, incompleta, de conversa da treta, assinada através de diversos pseudónimos.... mas nem tudo estará aqui. Anabela Quelhas

Friday, September 15, 2006

Brasília



Quando era jovem, quase a concluir a década de teen-ager, foi-me exigido leccionar uma aula de três horas, tendo como público, 50 indivíduos ávidos de saber, rigorosamente atentos, inflexíveis e determinados nas suas avaliações. O tema sorteado foi, as novas cidades de Brasília e Chandigarh (capital de Punjabe, Índia).
Nessa época, os meios áudio visuais, encontravam-se quase na pré-historia; teria disponível um projector de diapositivos, daqueles que avariam na hora mais imprópria, e que queimam a película fotográfica, quando não se lhe presta atenção e dedicação, durante alguns minutos.
Fiquei aterrada!
A minha reduzida simpatia pela cidade de Brasília (Chandigarh, ignorava-a até aquela hora!...), adornava ingenuamente o ramalhete da minha inexperiência juvenil.
A minha opinião sobre o Brasil, oscilava entre a paixão desmedida pelas duplas Jorge Amado e a sua Gabriela, Chico Buarque e Construção, e entre o desapontamento pelo bigodinho à Clark Gable, que os homens ainda insistiam em ostentar, já nos finais dos anos 60.
Perante uma situação difícil, a minha tendência inata, é sempre fugir para a frente, ou seja mergulhar de cabeça nos problemas.
Como digerir isto?
Como apresentar uma nova cidade, Brasília, pensada a partir do zero por Lúcio Costa e Óscar Neimayer, constantemente caricaturados, pela célebre frase, ridiculamente formalista: " Na arquitectura, o que interessa é ser bonito, se funcionar tanto melhor!!" (proferida com pronúncia brasileira)?
Como motivar a minha plateia para um tema que à partida, tinha no subconsciente de cada um, uma expectativa negativa?
Brasília é uma das consequências da política de Juscelino Kubitschek, construída entre 1956 e 1960..Localização - planalto central - Estado de Goiás
Objectivos:
- mudança da capital
- integrar o interior do país- gerar novos empregos
- ocupar mão de obra nordestina
- promover o desenvolvimento do interior do país
- desafogar o centro sul do território brasileiro.
Actualmente classificada como Património Cultural da Humanidade.
O projecto pertence ao arquitecto Lúcio Costa, foi imaginado segundo os princípios da arquitectura moderna (CIAMS) e a Carta de Atenas (1942) - zonas urbanas distribuídas segundo as suas funções, habitação, lazer, trabalho e circulação.
Segundo Lúcio Costa o projecto nasceu de um gesto simples, hoje denominado minimalista (está mais na moda), o sinal de uma cruz, que serve para assinalar um sítio, um lugar... adaptado à morfologia do local!....será trêta?...mas resultou, ajudou a mistificar o gesto criativo, tão simples e "ingénuo", e que transporta mecânicas de raciocínio tão complexas, lotadas de processos e de metodologias sucessivas de avaliação/decisão, como é projectar uma cidade!
Este pormenor..., reparei, encantou a minha assistência!
O traçado urbano e o simbolismo visual, adquire força na imaginação popular que o transforma num pássaro ou num avião. Estas formas concretas facilmente identificadas e retidas na memória colectiva, acabam por se converter na imagem do traçado urbano da capital brasileira. Na intersecção destes dois eixos, localiza-se exactamente o centro da cidade, que abriga os três poderes (Praça dos Três Poderes, legislativo, executivo e judiciário), a Catedral (capaz de abrigar 2.000 pessoas), museus e monumentos, tudo pensado numa escala monumental, transbordando simbologias nas formas arquitectónicas adoptadas -isto enche as medidas a qualquer aspirante a arquitecto!
O eixo correspondente às asas contêm as super-quadras, comércio e serviços, ladeados por um dos lados, por um gigantesco lago artificial de Paranoá, formando pequenas penínsulas onde se localizam, mansões e embaixadas.
" Super-quadra" ficou conhecida internacionalmente - edifícios de 6 pisos, assentes em pilares, com espaços de lazer directamente ligados à habitação, dando alguma autonomia e isolamento a estas "quadras".
"Brasília não tem esquinas", comentário ao facto desta cidade ser dominada pelos grandes espaços abertos, notando-se a ausência, da "rua corredor" tradicional. Os condicionalismos e as pré-referências, que sempre assistem a qualquer intervenção arquitectónica, são aqui inexistentes. A geometria é a chave orientadora de todo o processo criativo, as formas e as volumetrias surgem completamente livres de espartilhos abrindo, um vertiginoso caminho de total liberdade aos seus mentores, convertendo esta experiência numa utopia possível de realizar, só comparável à acção do Grande Arquitecto (Oi Carranca!).
.... slides projectados, uns atrás dos outros....beeeeeeeem, a plateia rendeu-se, já pouca atenção prestou ao final da aula (foi assim ou não, companheiro Rui?), e às interrogações que ficaram no ar (parte mais importante da aula)... completamente embuídos no prazer do exercício de projectar uma cidade nova, inundados pela utopia e preservados pela ingenuidade da idade.
Para os jovens europeus, qualquer cidade tem uma origem histórica - ou foram os suevos, ou os romanos, ou...- encontrar a possibilidade em que essa premissa não existe, torna tudo diferente, inverte toda a lógica projectual, que assiste o acto criativo, criando uma expectativa facilmente positiva, de liberdade. Esta nova cidade passou a encantar-me, pois é uma das mais ousadas realizações da arquitetura moderna mundial, e tem-me acompanhado como referencia arquitectónica, e exercício urbanístico na organização do território, dando-me oportunidade de a ver crescer, e evoluir, dando sempre uma atenção especial a todos os problemas que se interlaçam com ela.
A construção desta cidade em 4 anos, obrigou à deslocação de grandes massas de mão-de-obra de varias regiões do Brasil, que viam em Brasília a possibilidade de uma vida melhor e mais digna, sonho alimentado pelos políticos na época.
Esta expectativa positiva era desmedida e demasiado irreal. O símbolo do urbanismo moderno não conseguiu cumprir a esperança do povo. A cidade ideal, orientada pela Carta de Atenas e pelos conceitos do urbanismo racionalista apenas satisfaz a classe média e alta, que usufruem do esquema de vida adaptado a este espaço urbano, onde não faltam os jardins, os grandes espaços, a sectorização adequada, enfim tudo o que é necessário ao bem estar, porém à custa de uma forte segregação social - as cidades satélites que existem desde o inicio da construção da cidade.
O plano de Lúcio Costa não previu o tal fluxo migratório de trabalhadores essenciais para a construção da cidade, não foi prevista uma rede urbana de apoio, com infraestruturas que acolhessem esta população e permitisse a sua fixação e desenvolvimento; os trabalhadores foram-se acumulando no exterior da cidade formando um cordão de cidades satélites que ainda hoje existem. A capital do sonho e da esperança, rapidamente vislumbra a pequena distancia, a miséria, a falta de condições sanitárias e o pó vermelho das cidades, dos eternamente iludidos e enganados.
Brasília foi planeada para uma população de apenas 500.000 habitantes.
A população total de Brasília (incluindo as cidades satélites) já é de mais de 2 milhões de habitantes.
"A longa distância entre as satélites e o Plano Piloto isolou dois terços de sua população metropolitana que reside nos núcleos periféricos, além de gerar problemas de custo para o transporte coletivo", admite Lúcio Costa.
Entretanto, como toda cidade grande, existem também favelas, grandes concentrações de áreas com população de baixa renda, principalmente no entorno. O turista que se dirige à cidade de carro, percebe logo isso nas imediações da cidade. Isso, em razão de promessas políticas de governadores do Distrito Federal, que incentivaram o êxodo de outras regiões para a cidade o que acabou causando o aumento do desemprego e da violência.
Como será com a nova Capital de Angola, que alguns insistem em apontar como saída para o caos urbanístico de Luanda? Serão replays de quatro décadas atrás?
Anabela Quelhas
editado em www.sanzalangola.com em 9/04/2006

0 Comments:

Post a Comment

<< Home