ARKIVÃO

ARKIVÃO - espaço para reunir o que vou escrevendo ao longo do tempo, e que se encontra espalhado por aí; arkitectura, referências a terra de origem, divagações disléxicas; tentativa de organização, mas sem critério e por vezes sem cronologia; organização anárKica, incompleta, de conversa da treta, assinada através de diversos pseudónimos.... mas nem tudo estará aqui. Anabela Quelhas

Thursday, July 27, 2006

Traveste-se à 2ª feira


Traveste-se à 2ª feira
Depois de um fim-de-semana, chega a 2º feira (lógico!) e vira travesti, transformista, como lhe queiram chamar.
Porque à 2ª feira? Bahhh… oh pá, os museus estão fechados, os centros comerciais estão a repor os stocks, nada pra fazer, nada em que pensar, criatividade a zero… será?
O seu publico é de qualidade, garanto!
Faz umas dezenas de quilómetros, e apesar de odiar esperar, nesse dia, esperar, lhe agrada! Espera por todos, e fica bem por ter oportunidade de esperar. Basta atrasar-se um elemento, e logo fica feliz por esperar, não perde a paciência! É assim, a vida tem destas contradições!
Prepara-se com antecedência.
Maquilha-se, estica o nariz, arredonda os olhos, deforma sobrancelhas, explora todas as possibilidades dos riscos e das cores. Recria a roupagem, inventa chapéus, imagina e antecipa o sorriso da sua plateia, potencia alguma alegria, navega-lhe nos olhares… e abastece o seu automóvel com muitos kleenexs para a viagem de regresso.
Não tem produtor, não tem subsídios, não tem micenas…. E mesmo assim, se traveste… à 2ª feira, uma vez por mês. É um dia bom… logo no início da semana, uns estão relaxados porque regressam do fim-de-semana, outros entristecem porque começam a semana. Mas também pode ser outro dia qualquer.
Naquele dia, chama-se Esperança e se traveste. É transformista voluntária.
É ela e não é! Guarda o seu silêncio, a sua ironia, o seu humor caústico, as suas interrogações, as suas interpretações da alma e as reacções do corpo, e vira-se do avesso.
Nunca fez teatro, apoia-se apenas na encenação da vida e concentra-se no seu público.
Já foi Pocahontas, Capitão Gancho, Charlot, Florzinha, Miguel Strogonof, Dali, Robinson Sucrué, Napoleona, Dartagnan, Moura Encantada, Namorada do Zorro, Anjo Azul, Capuchinho Vermelho, Picassa, Xerazede, Mafalda, Gato das Botas,…. Sei lá… imaginem, até já foi dinossauro T-rex.
Ser transformista é uma actividade discreta, quase secreta, que realiza de forma solitária, mas é uma tarefa árdua, dura, das mais complicadas e difíceis, que realizou até hoje; é uma tarefa que mexe com sentimentos, com afectos, com perdas superiores aos ganhos, numa estranha contabilidade com que a vida nos presenteia. É daquelas tarefas que criam um nó na garganta, que nos aperta até sufocar; nos faz saltar rios lágrimas dos olhos e invade a alma de escuridão. Não gosta de falar sobre isso, pois emociona-se sempre. Normalmente não assume que o faz. Não expõe essa sua faceta, pois conversar sobre isso afunda mais a revolta que encerra em si, afundando mais uma ferida que não cura nunca.
Conta com o apoio pontual de um artista plástico, que a seu pedido, raramente lhe faz perguntas. No dia em que lhe pediu para fazer uma cabeça e uma cauda de T-rex, este começou a duvidar da sua sanidade mental.
- O que é que ela andará a fazer vestida de Trex em pleno Outono? Será que isto é paranóia grave?
Esperança levantou a ponta do véu, e continuou a ter o apoio incondicional do seu amigo escultor.
O Miguel, o Fábio, a Mariana sabem, que ela vem de longe, e a quem viaja, logicamente, fica sempre bem levar uma grande mala consigo (sugestão deles). Essa mala contém de tudo o que se possa imaginar, e o seu público é curioso, adora remexer: Tem fita métrica, espelhos côncavos e convexos, tintas e pincéis, cassetes de vídeo, chapéus, bigodes postiços, clips, alicate, papel higiénico, lenços coloridos, material para mágicas simples, papel, óculos escuros, um puzzle, um desentupidor, uma espada, uma fechadura, uma lanterna, uma panela, uma corda, um relógio despertador, uns binóculos, um caleidoscópio, etc., etc.. e tudo corre bem, até há palmas, sempre que há força para bater as mãos…
Na viagem de regresso, não há kleenexs que cheguem. Vem todo o caminho a falar sozinha, ás vezes pergunta e responde, construindo um diálogo de um só personagem - ela … Promete-se a si mesma, que aquela foi a ultima vez, que não pode continuar a somar perdas continuas, que não aguenta mais olhar os rostos daqueles meninos, sempre diferentes, que vai desistir, “para que se foi meter numa cena daquelas?”, que vai fechar aquela mala à chave e vai deitar a chave ao rio, que aquilo é muito duro, é a pior ressaca que conhece…
Às vezes chega a tal 2ª feira, e sente que não está psicologicamente bem e adia para a próxima. Outras vezes, chega um apelo urgente, e há que mudar tudo à última da hora, encosta os lápis, as canetas e os papeis, até cancela compromissos importantes, e surgem outros papéis e outros livros na sua mesa de trabalho. Faz directas a ultimar a transformação pretendida.
Encontra-se com o seu público sempre de cara pintada. Cantar, não canta, às vezes faz karaoke, costuma ler algo relacionado com a personagem que encarna, reinventa a sua capacidade de surpreender, redescobre mil vezes um sorriso novo para oferecer, mas apesar de arrancado a ferros, nunca é amarelo, e sim verde esperança.
Nunca se despede de ninguém, diz apenas que vai tomar um café e volta já.
Afinal o seu público são as crianças do IPO.
Dia da criança – 1 /06/2002
Repórter XL

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

XL:
ADMIRÁVEL!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

5:19 PM  

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